quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Pequenos Prazeres


Acho que já disse num poema que os nossos textos caminham livremente no vento e um dia os encontramos sem aviso prévio. Foi justamente isso que aconteceu com as duas crônicas dessa semana. Escrevi-as no começo dessa década e enviei-as ao jornal Expoente e outros da região. Depois perdi os originais e as publicações. Um mês atrás meu amigo Tiago encontrou-as e pude lamber minha cria no original, em letra de mão. Não fiz uma leitura crítica, me perdoem, fiz uma leitura puramente emocional e me encantei de novo com os textos. São esses pequenos prazeres que me mantém viva!

O velho cão

Nunca mais o encontrei. Nestes dias em que nada faz o menor sentido, voltou-me à memória a sua figura digna: o velho cão. A dignidade do velho cão vira-lata exausto, com uma perna quebrada subindo a rua. A cabeça ia erguida, apesar da dor estampada a cada passo. Na latia, não mendigava comida, não revolvia as latas e os sacos de lixo, apesar de não ter dono, de ser um cachorro de rua.
O velho cão subia a rua íngreme majestosamente, apesar da perna quebrada, apesar da fome estampada nos ossos aparentes. O velho cão ia silencioso, consciente do seu destino, da sua existência que chegava ao fim. Não aparentava amargura, simplesmente caminhava, como se soubesse quais trajetos deveria fazer. Todos os dias parecia percorrer os mesmos lugares, arrastando a perna, mas não arrastando a si mesmo.
Nunca me olhou, talvez pressentisse a angústia que me causava, mas sempre, há mesma hora, subia a minha rua, dignamente, sem a menor pena de si mesmo.
Descobri que algumas pessoas o alimentavam. Ele comia sem estardalhaço e saía mansamente. Alguns pensaram em aliviar seu sofrimento, mas acho que no fundo não tiveram coragem, o velho cão não inspirava piedade, parecia querer subir as velhas ruas até o fim, parecia até sentir prazer em subir as velhas ruas, se despindo dos seus desenhos, seus postes, suas árvores.
Desapareceu naturalmente, como as chuvas, como o sol ao fim do dia. Foi subindo menos as ruas, fomos esquecendo dele, até que não o vimos mais.
Nunca me afeiçoei a animal algum, do velho cão tenho às vezes inveja profunda e o maior exemplo de sabedoria em relação ao tempo, as dores, a dignidade e a própria vida.


Pouso

O velho comunista sentia-se fraco; caminhava meio trôpego, esforçando-se para não desmaiar na calçada. O sol ardia, a roupa pesava, sua cabeça latejava, a fome e a náusea misturavam-se; o desespero e o alívio da morte intercalavam-se a cada passo, a cada respiração difícil, a cada tremor das velhas juntas.
O velho tentava não chorar, tentava recordar-se dos bons dias, dos velhos sonhos, dos livros, das mulheres, das guerrilhas vividas e imaginadas; mas, a cada passo a dor e a tontura aumentavam.
O velho, numa última tentativa de auto-controle, começa a pensar na desgraça de não haver um sistema de saúde eficiente no país; por um momento, sente-se rejuvenescido, tem ímpetos de discursar, energiza-se como por encanto. Mas a dor e a tontura o chacoalhavam; o velho comunista sente-se só, uma sensação de desamparo invade a velha alma, uma revolta sacode a mente controlada, naquele momento o velho queria assistência, bem lá no fundo, o velho sonha com um hospital particular, com uma equipe médica confortando e abreviando-lhe o sofrimento, alguém segurando sua mão...
Naquele instante o velho suspirou por não ter nada, por não ter conseguido ver seus ideais tomarem forma, pelo filho que fugiu...
O velho comunista escorava-se numa árvore em frente ao pronto-socorro, olha a fila imensa, os rostos tristes, pensa em pedir ajuda pensa em suplicar um último momento de alívio, mas desiste. Senta-se na calçada, deixa as lágrimas caírem em profusão, contempla mais uma vez a incoerência a sua volta, não se conforma e chora impotente saldo, o lamento e a revolta de sua vida inteira.
O velho comunista solta um gemido, tosse, a dor e a tontura tomam conta do seu corpo; sente sede, mas contenta-se com a própria saliva; deita-se na calçada suja, sente um último e doloroso espasmo, o alivio das dores e a escuridão trazem paz, o velho simula um sorriso, relaxa o corpo, finalmente inundado por uma sensação de liberdade.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário