TODOS OS BICHOS DE NÊ
SANT’ANNA
INSIGHT 1: SEU VALTER. Passamos juntos alguns Natais. Seu Valter
era dessas pessoas raras, educadíssimo, perfeccionista e... guloso. Pra ser
sincera, nós dois éramos. Enquanto todos os outros convidados para a Ceia de
Natal contentavam-se com porções delicadas de doces, eu e seu Valter
consumíamos porções industriais. Nesses Natais encontrei minha “alma gêmea” no
quesito açúcar; seu Valter confessou-me que também gostava de sobremesas que
“ardiam” na garganta. Tal como eu, nada o agradava mais em festas que uma
“overdose” de sorvetes, bolos, tortas, chocolates e panetones. Lembro-me dele
fatiando com maestria um Tender e depois de arrumar as fatias (absolutamente da
mesma espessura) na travessa, guarnecê-las artisticamente com abacaxi (também
milimetricamente fatiado) e outras frutas.
Apesar do “vício” em açúcar, seu
Valter era magro e dinâmico; aos oitenta e tantos anos andava de bicicleta
pelas ruas de sua cidade e não economizava energia e simpatia quando nos
recebia para o Natal. Ele me lembrava meu avô Elídio nas cores européias e nos
modos cavalheirescos. Meu avô, entretanto, não tinha a “coragem” de se entregar
aos prazeres de uma enorme sobremesa, consumia asceticamente pratos festivos e
vivia praticamente à base de sopa e pão adormecido que ele guardava embrulhado
num guardanapo em uma gaveta do seu guarda-roupa. Até hoje me lembro do cheiro
desse pão e como o sangue corre nas veias, confesso que não gosto de pão fresco,
gosto mesmo é de pão “dormido”.
Meu avô “arranhava” o idioma
alemão, seu Valter o falava com fluência e me levava a uma viagem de retorno à
infância. Seu Valter e meu avô foram pessoas felizes porque eram habitados por
uma essência generosa, ética, amorosa e produtiva e ocuparam-se, cada um a seu
modo, de construir uma história de vida moldada nessa essência. Ambos me
deixaram doces lembranças, as de vô Lídio são metafóricas e as de seu Valter
literais.
INSIGHT 2: “Temos certeza que somos adultos quando a
responsabilidade de providenciar os funerais é nossa”.
INSIGHT 3: “As pessoas não habitadas por um mínimo percentual de
coisas boas, desperdiçam suas vidas empenhando-se em contestar a competência e
o sucesso alheios e secam consumidas na própria inveja, baixa-estima e
mediocridade”.
PÍLULAS DE POESIA
Eu canto
Porque o instante existe
E a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.
Fragmento do poema Motivo de
Cecília Meirelles