quarta-feira, 22 de maio de 2013

Revelando Talentos


Das palavras


Desde meus primeiros dias escolares, ouvia dizer que o nome de nossa cidade, Iepê, significava liberdade, em tupi-guarani, língua falada pelos habitantes da região, há muito tempo desaparecidos. Retirada do passado, a palavra servira para designar os valores dos pioneiros que, semelhantes a inúmeras partes do mundo, sofreram resistência motivada por diferenças religiosas.
Mais tarde, por força de meus estudos de então, procurei em vários dicionários o significado desta palavra, iepê, para confirmar a origem do nome da cidade, a minha origem, de certa forma. Mas o esforço foi em parte decepcionante, pois descobri que o verbete liberdade significava “o primeiro”, “em primeiro”. Conferi outras fontes e, quando certo de minha descoberta, pensei em escrever sobre o episódio, mas constatei, agora decepcionado, que outras pessoas se anteciparam e haviam feito o registro correto sobre o significado da palavra que nomeava e certificava a naturalidade de quem nasce em Iepê.
Mas como compreender e refletir sobre a atribuição equivocada de nossos fundadores ou de nossos primeiros registros históricos ao atribuir significado equívoco a uma palavra de idioma desconhecido? Possivelmente, no afã de louvar os fatos e engrandecer os feitos de seus personagens, a motivação pela escolha da palavra iepê e seu suposto significado foi marcado pela força simbólica e grave de atos políticos, com recados e mensagens grandiloquentes muito bem endereçadas. Aos presentes e aos pósteros.
Inicialmente, é necessário compreender que a escolha de vocábulo indígena para designar novas povoações, além de ser um procedimento comum na época, como podemos constatar nos nomes das cidades como Chavantes, Canitar, Paraguaçu e Ibirarema, era ainda uma mistura de homenagem aos povos primitivos, bem como forma de amenizar nosso remorso por ter dizimado impiedosamente uma cultura milenar.
Entretanto, para além do costume em voga na época e da avaliação jocosa dos parcos conhecimentos linguísticos dos pioneiros sobre a língua tupi-guarani, é interessante atentar para um aspecto muito mais relevante da formação humanística, digamos assim, desses mesmos homens e mulheres. Ou seja, se houve equívoco na atribuição de significado à ação de formar uma comunidade de homens livres numa região completamente isolada, é possível ligar o suposto sentido da palavra iepê a uma longa e rica tradição do processo civilizatório europeu, realizada por homens como Lutero (1483-1546) e Calvino (1509-1564), reconhecidos lutadores pela liberdade entre os homens, muito além da liberdade religiosa. E é cabível a lembrança das obras de Thomaz Müntzer (1490-1525), célebre reformador presbiteriano, que se destacou ao lutar pela liberdade das pessoas, embora haja dificuldades em compreendê-lo apenas como homem religioso, e de John Locke (1632-1704), filósofo britânico ideólogo do liberalismo. Para se destacar a importância da liberdade na ação entre os homens, Calvino escreveu:

Os governantes de um povo devem envidar todo esforço a fim de que a liberdade do povo pelo qual são responsáveis não desvaneça de modo algum em suas mãos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem, devem ser considerados traidores da pátria. (Calvino, João. A instituição da religião cristã. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 882, tomo II).

Sem querer afirmar que nossos fundadores eram profundos conhecedores do pensamento religioso e político dos autores aqui lembrados, é sabido que pelo menos os dois primeiros foram (são) leituras obrigatórias para as ações dos presbiterianos no processo civilizatório realizado no Brasil. Segundo informes históricos e depoimentos pessoais, figuras como Chico Maria, Antônio de Almeida Prado e Maria Júlia de Almeida possuíam bons cabedais de leitura, considerando a época e o lugar, possuindo até bibliotecas em suas casas, logo é possível afirmar que alguma obra de Calvino e de Lutero fizesse parte deste acervo. Consequentemente, haveria, na gênese da formação do município, a busca e a efetivação da liberdade como princípio norteador da conduta das pessoas. E isto, sem dúvida, é notável e digno de registro.
É por considerar tal raciocínio verossímil que sugiro alguns exercícios aos jovens de Iepê: ir além, ultrapassar o elogio patrioteiro e saudosista e realizar pesquisa objetiva, com os rigores metodológicos necessários sobre este fundante aspecto da formação do município de Iepê, realizando, por exemplo, levantamento, catalogação, registro, leitura e análise das bibliotecas desses personagens. Certamente, os livros, cartas, apontamentos, recibos devem estar espalhados entre os descendentes dos pioneiros. Conforme a natureza do material encontrado, será possível transformá-lo em artigos científicos, dissertações ou teses acadêmicas nas áreas de Letras e de História, o que seria uma contribuição inestimável. Mãos à obra, moçada!

Três Lagoas/MS, 19/05/2013.
José Batista de Sales, professor. email: salesjb@uol.com.br

Um comentário:

  1. Texto muito interessante e incentivador aos nossos jovens iepenses...Parabéns!

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