TODOS
OS BICHOS DE NÊ SANT’ANNA
Insight: COPA, CERA E HIPNOSE
Nasci em setembro de 1966, ano de
Copa do Mundo. Da Copa de 1970 quase nada recordo, apesar do tri brasileiro. Em
1974, durante um dos jogos, no qual a Seleção Brasileira perdia, minha mãe,
torcedora fanática, e todos que assistiam aquele jogo em nossa casa – primos,
tios, amigos e vizinhos – roíam as unhas em desespero. Quando o Brasil marcou
um gol, ficaram alucinados e durante a comemoração, que começou na sala e
acabou na varanda, alguém me empurrou e eu rolei escada abaixo.
Naquela época, era hábito encerar
todo tipo de chão. O piso e a escada da nossa varanda, de cimento queimado
vermelho e cacos de ladrilho, tornava-se um “sabão”. Por sorte, apesar da dor,
só torci o braço e, por azar, o Brasil perdeu aquele jogo e aquela Copa.
Minha mãe e o resto da torcida - a
doméstica e a brasileira, ficaram inconformados e como é comum nessas ocasiões,
procuraram culpados e milhares de explicações foram levantadas e debatidas: “se
o Pelé estivesse jogando imporia respeito, mas ele não quis se sacrificar pelo
Brasil; os jogadores se apavoraram; o juiz roubou” e por aí afora elencavam argumentos
para explicar tão grande infortúnio.
Compreendi naquele dia, a duras
penas, o fascínio e a loucura que o futebol e a Copa podem exercer sobre as
pessoas porque só cuidaram do meu braço depois que o jogo terminou.
Décadas depois, na última Copa,
estava no Rio de Janeiro e pegaria a ponte aérea Rio-São Paulo justamente no
dia do primeiro jogo do Brasil na Copa de 2010. Foi difícil encontrar um táxi
para fazer o trajeto do hotel ao aeroporto Santos Dumont. Quase todos se
preparavam para ver o jogo, e os que podiam encerraram o expediente mais cedo.
O taxista que me levou ao
aeroporto estava indignado, achava um absurdo o efeito que a Copa produzia nas
pessoas, incluindo seus próprios colegas taxistas, e mais absurdo ainda, a Copa
de 2014 ser no Brasil. Esse “filósofo” ou “vidente” foi destilando sua revolta
social e política durante todo nosso pequeno
trajeto, e hoje percebo que ali já estava a semente das manifestações de
rua que eclodem Brasil afora desde junho do ano passado.
Quando embarcamos, um passageiro
estava extremamente nervoso com a expectativa do resultado do primeiro tempo do
jogo que aconteceria justamente enquanto voaríamos do Rio a São Paulo. A
aeromoça tratou de acalmá-lo, prometendo informar-lhe sobre o desenrolar da
partida.
Ao sobrevoarmos São Paulo, vi uma
paisagem inédita pela janelinha do avião. A imensa cidade parecia desabitada;
pouquíssimos carros pelas ruas, mas pouquíssimos mesmo, de modo que era
possível observar a cor do asfalto e o desenho das ruas.
Uma onda de terror naquele
momento me percorreu. De repente, o longínquo tombo de 1974 voltou à memória e,
mais uma vez, me dei conta do poder quase hipnótico que as Copas exercem no
Brasil. Decidi ser a última a desembarcar e desci com cuidado a escadinha. Ao
entrar na sala de embarque do aeroporto de Congonhas, quase não havia barulho,
apenas pessoas fitando, numa espécie de transe coletivo, o jogo exibido, sem
som, em várias telas espalhadas por todos os cantos.
Mais uma vez, tratei de prestar
atenção por onde pisava, enquanto aguardava o meu próximo embarque.
Arquivo Histórico Digitalizado Chico Maria |
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