Todos os bichos de Nê Sant’Anna
Começo os “trabalhos” do mês indicando
a leitura do livro “O Rei, o Sábio e o Bufão: uma fábula sobre Deus e as
Religiões” de Shafique Keshavjee; uma “bomba” nos preconceitos e um grito
inteligente e necessário para uma efetiva Cultura de Paz. Procurem lê-lo e me entenderão,
com certeza.
Divido com vocês, esse mês, três
crônicas e também agradeço pelo apoio que recebemos na reabertura do MHIPI e no
lançamento do livro De Liberdade a Iepê: uma terra para todos. Até maio.
1-
ENCOMENDAS
_ Por que não um poema infantil redondinho,
cheio de rimas, politicamente correto e bem bonitinho?
_ ...
_ Por que não uma historinha simples,
um romance de poucos personagens, lágrimas e algum sangue?
_ ...
_ Por que não umas frases fáceis,
cheias de motivação e que despertem algum tesão?
_ ...
_ Por que não uma música simplesinha,
três, quatro acordes e pitadas leves de sacanagem?
_ ...
_ Por que não um blog de receitas!
_ Receitas? Que tipo de receitas?
_ De qualquer tipo, poeta sem
imaginação! Receitas light, de sexo, de criação de filhos ou bichos, tanto faz,
você escolhe. Pra mim, basta acontecer.
_ Não sei se conseguiria tal proeza,
estou em crise...
_ De inspiração?
_ Talvez...
_ Hum... Por que não chamar de
“bloqueio criativo” e fazer umas palestras sobre superação?
2-
INSTINTOS
Chegou um dia em que ela não pode mais
mentir a si mesma, era a velha lei da selava: o instinto de sobrevivência!
Ela sentia-se morrendo aos poucos, uma
pequena agonia todos os dias. As palavras dele incomodavam, e o seu andar lhe
deixava louca. A sua simples presença a irritava e quando chegava a hora dele
voltar era um suplício diário.
Ela sabia! Nada, nada mudaria.
Variações do mesmo tema, do mesmo cheiro, mesmo do mesmo, do mesmo.
Mas, ela já estava fraca. O instinto
de sobrevivência falhara, ou teria sutilmente evoluído?
3-
DR – discutir a relação
Ela sabia de
todas as traições do marido: reais, virtuais, sexuais, sentimentais. Não se
enganava, eram sentimentais, sim. Há muito ele procurava consolo em outras
camas e em outras conversas, para beber palavras que o fizessem sentir-se
macho, interessante, inteligente...
Quando ele
chegava das aventuras querendo - porque no fundo era o que ele queria - uma boa
briga, ela se virava e dormia ás vezes sem dizer palavra, ás vezes
oferecendo-lhe desculpas perfeitas, ás vezes simplesmente ignorando-o. Mas ela
nunca fingia dormir; não perderia por nada o prazer de ver a cara do marido,
marcada por expressões de frustração e raiva. Ele ansiava por uma cena,
inseguro por natureza, como as descritas pelos amigos: muita DR, muito choro,
muita culpa de ambas as partes, depois sexo e mais DR. Isso ele nunca teria, o
jogo era outro, psicológico e perverso, como os filmes que ela gostava e ele
nunca entendera.
O marido era
um sujeito comum, um cidadão comum, “daqueles que se vê na rua, falava de
negócios, ria, via show de mulher nua”, Belchior já o desnudara em sua canção.
Ela adorava essa música, sentia espasmos e calafrios quando a ouvia e
cantarolava para o marido, mas ele nunca prestou atenção na letra.
Enquanto o
marido definhava, ela renascia. Nunca fora tão vital! Entrava no e-mail dele e
lia as idiotices que escrevia para as “amantes”. As respostas eram ainda
piores, mas diziam tudo que ele gostaria de ser: bonito, gostoso, interessante,
de medidas generosas etc., etc.
Depois de um
tempo, bisbilhotar no e-mail alheio perdeu a graça, eram textos previsíveis
como ele, procurando e encontrando mulheres previsíveis como ele. Sentiu pena
do marido, mas pena por quê? - raciocinou, ele deveria estar feliz, saciando
sua autoestima.
Estava
enganada. O marido só ficaria pleno com uma cena. Por que só ele? Todos os
amigos desfrutavam de mulheres ciumentas! Todos os amigos eram obrigados a
inventar desculpas! Ele não! Será que era tão desprezível assim? Só merecia
descaso? Passou a deixar pistas evidentes das traições: notas de motel,
torpedos abertos, marcas de batom...
Ela gostou!
Por um tempo achou graça naquilo, mas logo tudo foi ficando monótono outra vez.
A única diversão era a agonia do marido, a cotidiana espera por uma reação
dela, mas isso ele não teria! Não abriria mão do único prazer daquela
relação...
Não que ela o
quisesse mal, não, longe disso, ela até o achava um bom cara. Um cara...
previsível!
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