quarta-feira, 23 de abril de 2014

MÚLTIPLOS OLHARES



Todos os bichos de Nê Sant’Anna 



Começo os “trabalhos” do mês indicando a leitura do livro “O Rei, o Sábio e o Bufão: uma fábula sobre Deus e as Religiões” de Shafique Keshavjee; uma “bomba” nos preconceitos e um grito inteligente e necessário para uma efetiva Cultura de Paz. Procurem lê-lo e me entenderão, com certeza.
Divido com vocês, esse mês, três crônicas e também agradeço pelo apoio que recebemos na reabertura do MHIPI e no lançamento do livro De Liberdade a Iepê: uma terra para todos. Até maio.

1-             ENCOMENDAS
 _ Por que não um poema infantil redondinho, cheio de rimas, politicamente correto e bem bonitinho?
_ ...
_ Por que não uma historinha simples, um romance de poucos personagens, lágrimas e algum sangue?
_ ...
_ Por que não umas frases fáceis, cheias de motivação e que despertem algum tesão?
_ ...
_ Por que não uma música simplesinha, três, quatro acordes e pitadas leves de sacanagem?
_ ...
_ Por que não um blog de receitas!
_ Receitas? Que tipo de receitas?
_ De qualquer tipo, poeta sem imaginação! Receitas light, de sexo, de criação de filhos ou bichos, tanto faz, você escolhe. Pra mim, basta acontecer.
_ Não sei se conseguiria tal proeza, estou em crise...
_ De inspiração?
_ Talvez...
_ Hum... Por que não chamar de “bloqueio criativo” e fazer umas palestras sobre superação?

2-             INSTINTOS
Chegou um dia em que ela não pode mais mentir a si mesma, era a velha lei da selava: o instinto de sobrevivência!
Ela sentia-se morrendo aos poucos, uma pequena agonia todos os dias. As palavras dele incomodavam, e o seu andar lhe deixava louca. A sua simples presença a irritava e quando chegava a hora dele voltar era um suplício diário.
Ela sabia! Nada, nada mudaria. Variações do mesmo tema, do mesmo cheiro, mesmo do mesmo, do mesmo.
Mas, ela já estava fraca. O instinto de sobrevivência falhara, ou teria sutilmente evoluído?




3-             DR – discutir a relação
Ela sabia de todas as traições do marido: reais, virtuais, sexuais, sentimentais. Não se enganava, eram sentimentais, sim. Há muito ele procurava consolo em outras camas e em outras conversas, para beber palavras que o fizessem sentir-se macho, interessante, inteligente...
Quando ele chegava das aventuras querendo - porque no fundo era o que ele queria - uma boa briga, ela se virava e dormia ás vezes sem dizer palavra, ás vezes oferecendo-lhe desculpas perfeitas, ás vezes simplesmente ignorando-o. Mas ela nunca fingia dormir; não perderia por nada o prazer de ver a cara do marido, marcada por expressões de frustração e raiva. Ele ansiava por uma cena, inseguro por natureza, como as descritas pelos amigos: muita DR, muito choro, muita culpa de ambas as partes, depois sexo e mais DR. Isso ele nunca teria, o jogo era outro, psicológico e perverso, como os filmes que ela gostava e ele nunca entendera.
O marido era um sujeito comum, um cidadão comum, “daqueles que se vê na rua, falava de negócios, ria, via show de mulher nua”, Belchior já o desnudara em sua canção. Ela adorava essa música, sentia espasmos e calafrios quando a ouvia e cantarolava para o marido, mas ele nunca prestou atenção na letra.
Enquanto o marido definhava, ela renascia. Nunca fora tão vital! Entrava no e-mail dele e lia as idiotices que escrevia para as “amantes”. As respostas eram ainda piores, mas diziam tudo que ele gostaria de ser: bonito, gostoso, interessante, de medidas generosas etc., etc.
Depois de um tempo, bisbilhotar no e-mail alheio perdeu a graça, eram textos previsíveis como ele, procurando e encontrando mulheres previsíveis como ele. Sentiu pena do marido, mas pena por quê? - raciocinou, ele deveria estar feliz, saciando sua autoestima.
Estava enganada. O marido só ficaria pleno com uma cena. Por que só ele? Todos os amigos desfrutavam de mulheres ciumentas! Todos os amigos eram obrigados a inventar desculpas! Ele não! Será que era tão desprezível assim? Só merecia descaso? Passou a deixar pistas evidentes das traições: notas de motel, torpedos abertos, marcas de batom...
Ela gostou! Por um tempo achou graça naquilo, mas logo tudo foi ficando monótono outra vez. A única diversão era a agonia do marido, a cotidiana espera por uma reação dela, mas isso ele não teria! Não abriria mão do único prazer daquela relação...
Não que ela o quisesse mal, não, longe disso, ela até o achava um bom cara. Um cara... previsível!









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