Das palavras
Desde meus primeiros dias
escolares, ouvia dizer que o nome de nossa cidade, Iepê, significava liberdade,
em tupi-guarani, língua falada pelos habitantes da região, há muito tempo
desaparecidos. Retirada do passado, a palavra servira para designar os valores
dos pioneiros que, semelhantes a inúmeras partes do mundo, sofreram resistência
motivada por diferenças religiosas.
Mais tarde, por força de meus
estudos de então, procurei em vários dicionários o significado desta palavra,
iepê, para confirmar a origem do nome da cidade, a minha origem, de certa
forma. Mas o esforço foi em parte decepcionante, pois descobri que o verbete
liberdade significava “o primeiro”, “em primeiro”. Conferi outras fontes e,
quando certo de minha descoberta, pensei em escrever sobre o episódio, mas constatei,
agora decepcionado, que outras pessoas se anteciparam e haviam feito o registro
correto sobre o significado da palavra que nomeava e certificava a naturalidade
de quem nasce em Iepê.
Mas como compreender e refletir
sobre a atribuição equivocada de nossos fundadores ou de nossos primeiros
registros históricos ao atribuir significado equívoco a uma palavra de idioma
desconhecido? Possivelmente, no afã de louvar os fatos e engrandecer os feitos
de seus personagens, a motivação pela escolha da palavra iepê e seu suposto
significado foi marcado pela força simbólica e grave de atos políticos, com
recados e mensagens grandiloquentes muito bem endereçadas. Aos presentes e aos
pósteros.
Inicialmente, é necessário
compreender que a escolha de vocábulo indígena para designar novas povoações,
além de ser um procedimento comum na época, como podemos constatar nos nomes
das cidades como Chavantes, Canitar, Paraguaçu e Ibirarema, era ainda uma
mistura de homenagem aos povos primitivos, bem como forma de amenizar nosso
remorso por ter dizimado impiedosamente uma cultura milenar.
Entretanto, para além do
costume em voga na época e da avaliação jocosa dos parcos conhecimentos linguísticos
dos pioneiros sobre a língua tupi-guarani, é interessante atentar para um
aspecto muito mais relevante da formação humanística, digamos assim, desses
mesmos homens e mulheres. Ou seja, se houve equívoco na atribuição de
significado à ação de formar uma comunidade de homens livres numa região completamente
isolada, é possível ligar o suposto sentido da palavra iepê a uma longa e rica
tradição do processo civilizatório europeu, realizada por homens como Lutero (1483-1546)
e Calvino (1509-1564), reconhecidos lutadores pela liberdade entre os homens,
muito além da liberdade religiosa. E é cabível a lembrança das obras de Thomaz Müntzer
(1490-1525), célebre reformador presbiteriano, que se destacou ao lutar pela
liberdade das pessoas, embora haja dificuldades em compreendê-lo apenas como
homem religioso, e de John Locke (1632-1704), filósofo britânico ideólogo do
liberalismo. Para se destacar a importância da liberdade na ação entre os
homens, Calvino escreveu:
Os governantes de um povo devem envidar
todo esforço a fim de que a liberdade do povo pelo qual são responsáveis não
desvaneça de modo algum em suas mãos. Mais do que isso: quando dela
descuidarem, ou a enfraquecerem, devem ser considerados traidores da pátria.
(Calvino, João. A instituição da religião
cristã. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 882, tomo II).
Sem querer afirmar que nossos
fundadores eram profundos conhecedores do pensamento religioso e político dos
autores aqui lembrados, é sabido que pelo menos os dois primeiros foram (são)
leituras obrigatórias para as ações dos presbiterianos no processo
civilizatório realizado no Brasil. Segundo informes históricos e depoimentos
pessoais, figuras como Chico Maria, Antônio de Almeida Prado e Maria Júlia de
Almeida possuíam bons cabedais de leitura, considerando a época e o lugar,
possuindo até bibliotecas em suas casas, logo é possível afirmar que alguma
obra de Calvino e de Lutero fizesse parte deste acervo. Consequentemente, haveria,
na gênese da formação do município, a busca e a efetivação da liberdade como
princípio norteador da conduta das pessoas. E isto, sem dúvida, é notável e
digno de registro.
É por considerar tal raciocínio
verossímil que sugiro alguns exercícios aos jovens de Iepê: ir além,
ultrapassar o elogio patrioteiro e saudosista e realizar pesquisa objetiva, com
os rigores metodológicos necessários sobre este fundante aspecto da formação do
município de Iepê, realizando, por exemplo, levantamento, catalogação,
registro, leitura e análise das bibliotecas desses personagens. Certamente, os livros,
cartas, apontamentos, recibos devem estar espalhados entre os descendentes dos
pioneiros. Conforme a natureza do material encontrado, será possível
transformá-lo em artigos científicos, dissertações ou teses acadêmicas nas
áreas de Letras e de História, o que seria uma contribuição inestimável. Mãos à
obra, moçada!
Três Lagoas/MS,
19/05/2013.
José Batista de Sales,
professor. email: salesjb@uol.com.br
Texto muito interessante e incentivador aos nossos jovens iepenses...Parabéns!
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