quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O velho cão


Nunca mais o encontrei. Nestes dias em que nada faz o menor sentido, voltou-me à memória a sua figura digna: o velho cão. A dignidade do velho cão vira-lata exausto, com uma perna quebrada subindo a rua. A cabeça ia erguida, apesar da dor estampada a cada passo. Na latia, não mendigava comida, não revolvia as latas e os sacos de lixo, apesar de não ter dono, de ser um cachorro de rua.
O velho cão subia a rua íngreme majestosamente, apesar da perna quebrada, apesar da fome estampada nos ossos aparentes. O velho cão ia silencioso, consciente do seu destino, da sua existência que chegava ao fim. Não aparentava amargura, simplesmente caminhava, como se soubesse quais trajetos deveria fazer. Todos os dias parecia percorrer os mesmos lugares, arrastando a perna, mas não arrastando a si mesmo.
Nunca me olhou, talvez pressentisse a angústia que me causava, mas sempre, há mesma hora, subia a minha rua, dignamente, sem a menor pena de si mesmo.
Descobri que algumas pessoas o alimentavam. Ele comia sem estardalhaço e saía mansamente. Alguns pensaram em aliviar seu sofrimento, mas acho que no fundo não tiveram coragem, o velho cão não inspirava piedade, parecia querer subir as velhas ruas até o fim, parecia até sentir prazer em subir as velhas ruas, se despindo dos seus desenhos, seus postes, suas árvores.
Desapareceu naturalmente, como as chuvas, como o sol ao fim do dia. Foi subindo menos as ruas, fomos esquecendo dele, até que não o vimos mais.
Nunca me afeiçoei a animal algum, do velho cão tenho às vezes inveja profunda e o maior exemplo de sabedoria em relação ao tempo, as dores, a dignidade e a própria vida.



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